Na versão corrente da história da filosofia, da ciência e da civilização ocidental, elas brotam subitamente na Grécia antiga, como se não tivessem raízes anteriores no Egito, cujas pirâmides são frutos da construção, ao longo de vários milênios, de um profundo e desenvolvido conhecimento humano. Os hieróglifos egípcios e seus antecedentes constituem o primeiro sistema de escrita, e o calendário do Egito antigo era mais exato do que o moderno. O sistema dos mistérios continha os principais elementos da ética e arrazoados sobre a vida em sociedade. Os egípcios manipulavam uma adiantada matemática abstrata desde treze séculos antes de Euclides: identificavam o valor de pi com uma exatidão sem precedentes; calculavam ângulos à precisão de 0,07º; desenvolviam sofisticadas técnicas e teoremas na matemática, geometria e engenharia.
Hipócrates, o médico grego, é tido como fundador da medicina, quando dois milênios e meio antes os egípcios Atótis, Imhotep e seus sucessores desenvolviam os fundamentos de uma medicina objetiva e cientifica. Datada de 2.600 a.C., o papiro Smith, contém capítulos sobre doenças intestinais, hemintiase, oftalmologia, dermatologia, ginecologia, obstetria, diagnóstico de gravidez, odontologia, e o tratamento cirúrgico de abscessos, tumores, fraturas e queimaduras. Esses egípcios iniciavam o conhecimento da farmacologia, patologia e anatomia, das técnicas de assepsia, hemostasia por cauterização, suturas, antissepsia com sais minerais, e vários outros tratamentos e curas.
Não podemos expor aqui os conteúdos do conhecimento e os avanços tecnológicos alcançados pela civilização egípcia. Cumpre registrar a tentativa de seu aniquilamento nos anais de uma História vista e projetada através de uma lente que apresenta o “milagre grego” como início prístino do desenvolvimento do conhecimento.
Outra forma de negação do legado africano é a insistência em caracterizar a civilização egípcia como realização de outros povos, invasores do norte, ou ainda a persistente negação da identidade africana e negra dos egípcios. A obra de Cheikh Anta Diop, referência básica do resgate desse legado civilizatório, restabelece essas verdades por meio de rigorosa pesquisa cientifica.
O desenvolvimento tecnológico africano
Tais conquistas não se restringem apenas ao Egito. As tecnologias de mineração e metalurgia, a agricultura e a criação de gado, as ciências, a medicina, a matemática, a engenharia, a astronomia, enfim, todo um cabedal de reflexão e conhecimento caracterizava o desenvolvimento dos estados africanos. Em 1879, um cirurgião inglês visitava a região do atual país de Uganda, e registrou uma cesariana feita por médicos do povo banyoro, demonstrando profundo conhecimento dos concertos e técnicas de assepsia, anestesia, hemostasia, cauterização, e outros aspectos da medicina. Praticava‑se, a remoção de cataratas oculares através de cirurgias, e tumores cerebrais eram operados no Egito, há mais de quatro milênios.
A astronomia é um destaque do saber africano. No Quênia, ao lado do Lago Turkana, os restos de um observatório astronômico semelhante a Stonehenge, na Inglaterra. Um sistema de calendário complexo e preciso foi desenvolvido até o primeiro milênio a.C. na África oriental, com base nos cálculos astronômicos. Os dogon, que viveram nas terras do antigo império de Mali, perto da capital universitário de Timbuktu, detém uma concepção moderna do universo e com conceito extremamente complexo da astronomia. Desde há seis séculos, eles já conheciam o sistema solar, a Via Láctea com sua estrutura espiral, as luas de Júpiter, e os anéis de Saturno.
Sabiam da natureza deserta e infecunda da lua, e muito antes que o ocidente conseguisse observá-lo com a ajuda de sofisticados aparelhos, conheciam o pequenino satélite da estrela Sírio B, invisível ao olho nu. Denominavam‑no PoTolo, e desenhavam, com exata precisão, a sua órbita elítica em torno de Sírio. Projetaram corretamente a sua trajetória até o ano 1990, em desenhos que conferem precisamente com o curso projetado pela astronomia moderna.
No campo da metalurgia, há vários exemplos como o dos haya, povo de fala banta habitante de uma região da Tanzânia perto do lago Vitória. Há dois mil anos, produziam aço em fornos que atingiam temperaturas bem mais altas do que fossem capazes os fornos europeus até o século XIX. Com base na tradição oral, a antiga tecnologia de fundição foi reproduzida fisicamente, confirmando sua eficácia.
Monomatapa, em Zimbábue, é outro exemplo da tecnologia aplicada na África antiga. Capital de um império que durou trezentos anos, sua construção significa uma verdadeira façanha de engenharia, encerrando uma cidade murada do dez mil habitantes. Estudiosos atribuíram sua construção a povos exógenos à África, e até a extraterrestres. Entretanto, o esforço de negar à África a sua autoria foi em vão, e este se agrega a outros incontáveis exemplos do
desenvolvimento tecnológico na África tradicional.
Elisa Larkin Nascimento
*Doutora em psicologia pela USP e Mestre em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Nova Iorque. Co‑fundadora do IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro‑Brasileiros).
Coordenou o Setor de Ensino do Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e Afro‑Americanos da UERJ.
FONTE:http://afrobrasileira.multiply.com/journal/item/8 ACESSADO EM 12/05/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário