SAPUCAIA DO SUL/RS

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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Tem orixá no samba: Clara Nunes e a presença do candomblé e da umbanda na música popular brasileira

As influências africanas na cultura brasileira foram resgatadas pela indústria fonográfica que se mostrou mais interessada do que nunca nesses elementos culturais negros e eles se tornaram cada vez mais presente nas imagens e discursos de brasilidade oficial e comercial. O candomblé se expandiu adquirindo tal prestígio, que na década de 1980 se consolida como religião de conversão universal, deixando de ser uma religião exclusivamente de negros (Silva & Amaral 1996). As artes (música, cinema, teatro, dança, etc.) buscaram nos elementos que remetem a um passado africano as novas referências e houve um grande aumento da produção e consumo de música com forte presença das temáticas afro-brasileiras, entre elas a religião.

No cenário musical nacional surgiu uma série de compositores e intérpretes que buscaram, na nascente "cultura afro-brasileira", os elementos para compor suas obras.

A partir da década de 60, com o questionamento e crítica das influências externas em nossa cultura e nos meios de comunicação de massa, surgem movimentos de conscientização política como os dos negros, e artísticos, como o tropicalismo, que revalorizam os temas nacionais. A cultura afro-brasileira entrou na moda nos grandes centros urbanos do sudeste, e artistas, nacionalmente reconhecidos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Vinícius de Moraes, Edu Lobo, Carlos Lira, Martinho da Vila, Clara Nunes e outros, em geral ligados ao candomblé e à umbanda, divulgaram nacionalmente os nomes e as lendas dos orixás. (Silva & Amaral 1996:206)

Dentre esses artistas acima citados, Clara Nunes foi aquela que mais freqüente e explicitamente cantava músicas com temas ligados ao candomblé e a umbanda. A obra de Clara Nunes (seu repertório, sua performance em vídeos e shows, a personagem que criou para divulgar sua carreira, a própria forma que expôs, em revistas e jornais, suas experiências religiosas) é um exemplo paradigmático de como, via música, as religiões afro-brasileiras impregnaram a cultura nacional com seus valores, suas cores, seus orixás, seus ritmos.

Recuperando as trajetórias artística e religiosa da cantora, assim como a análise de sua obra, aqui apresentada, pode-se constatar como essas correspondem não só a formação do campo religioso afro-brasileiro, como também reproduzem uma visão positiva dessa religiosidade no âmbito da cultura nacional.

Sua primeira experiência religiosa foi no catolicismo, durante a infância, apenas na adolescência é que teve os primeiros contatos com o espiritismo, quando sua família se converteu ao kardecismo. Nessa primeira experiência com o espiritismo, Clara conheceu um kardecismo tradicional, praticado em Minas, fortemente influenciado pelos ensinamentos do médium Chico Xavier, que pregava o modelo católico de santidade (sofrimento, renúncia, pobreza e caridade).

Somente numa fase posterior da sua vida, Clara Nunes se converteu a umbanda com o batismo no Rio Capibaribe. Sua inserção nessa religião ocorreu em dois lugares específicos, inicialmente no terreiro de Pai Edu uma casa de xangô pernambucano15 , e mais tarde nos terreiros cariocas, em especial o de Vovó Maria Joana Rezadeira. Com isso a cantora teve contato tanto com práticas influenciadas pela tradição banta (a umbanda e a macumba do Rio de Janeiro) quanto pela iorubá (o xangô pernambucano).

Na época da conversão de Clara Nunes, havia uma maior valorização da tradição iorubá em relação à banta, em especial os terreiros nagôs baianos (Gantois, Casa Branca e Opô Afonjá) que serviram de exemplo para a elaboração de etnografias clássicas sobre o culto do candomblé no Brasil nas quais essas práticas foram consideradas mais "puras" por uma série de intelectuais desde os anos de 1940; entre eles: Arthur Ramos, Roger Bastide e Pierre Verger, o que conferiu a esses terreiros notoriedade e legitimação. Por isso, as práticas iorubás eram mais valorizadas e apareciam com mais freqüência nas músicas, nas peças de teatro, nas tramas das novelas, nos enredos de escola de samba etc. Isso ocorreu principalmente na MPB produzida nessa época, sendo muito menor a referência à tradição angola em relação à nagô ricamente detalha nos trabalhos de Vinícius de Morais, Baden Powell, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, João Bosco e Aldir Blanc, entre outros.

Talvez por ter tido uma experiência pessoal marcada pelo trânsito entre as chamadas "religiões espíritas" no Brasil, e assim também ter entrado em contato com as práticas bantas, Clara foi uma das poucas artistas que tem em seu repertório referências ao candomblé angola e as entidades bantas. Uma outra característica do repertório de Clara Nunes é que quando as mais variadas práticas bantas e iorubás aparecem juntas numa música, não há entre elas uma relação hierárquica, assim como também não há uma relação hierárquica entre candomblé e umbanda. Todas são descritas de forma positiva, e nenhuma se sobrepõe a outra. Exemplos do que foi dito pode ser encontrado em duas músicas, "Banho de Manjericão" e "Nação". Na primeira as práticas mágicas da umbanda são descritas de forma bem positiva, valorizando o poder de cura dessa religião, além disso, a umbanda aparece no mesmo nível hierárquico do cristianismo. Já na segunda, Clara declara pertencer a todas as nações, Angola, Keto e Nagô, sem distinção e ao final saúda tanto orixás, quanto pretos velhos, sem colocá-los numa relação de desigualdade.

Em vida, Clara Nunes foi uma grande divulgadora das religiões afro-brasileiras cantando um repertório que esmiuçou esse universo religioso revelando um "Brasil Mestiço". Após sua morte, ao passar de cantora à "Deusa dos Orixás", sua obra continua sendo referência incentivando a propagação das religiões que tanto cantou.

O tipo de análise aqui proposta procurou fugir do olhar dominante nos estudos sobre candomblé e umbanda porque se propõe entender essas religiões fora de seus espaços típicos de manifestação. O que estava em foco não era o campo religioso afro-brasileiro em si, com seus adeptos e suas dinâmicas, mas os diálogos estabelecidos entre essas religiões com outros campos da cultura nacional, no caso a música popular.

A intenção era "explorar algumas das muitas formas pelas quais seus símbolos [da religião], artefatos, valores projetos e questões se constituem e colaboram para construir e transformar os cenários sociais e políticos de que participam" (Birman 2003:12). Nesse sentido, o exemplo de Clara Nunes se torna bastante interessante porque através da obra dessa artista se pôde explorar a construção de um diálogo ente campos religiosos e o da música popular, que ajudou na divulgação positiva de religiões historicamente perseguidas, e possibilitou uma nova compreensão das mesmas.

FONTE: Leia o texto na íntegra no site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-85872007000200005&script=sci_arttext - Acessado em 10/11/2009

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