SAPUCAIA DO SUL/RS

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domingo, 4 de outubro de 2009

Sinopse de livros






Ifá, o adivinho

LIVRO

:: Ifá, O Advinho, de Reginaldo Prandi – Ilustrações: Pedro Rafael – Editora Cia das Letrinhas.

Os dois livros fazem parte de uma trilogia. O material utilizado na trilogia é produto de uma obra voltada para o público adulto, feita pelo próprio autor, sendo, portanto, uma coleção com aportes sociológicos bem estruturados. O objeto da trilogia é a cosmogonia africana, deixando claro que existe uma leitura dos brasileiros sobre essa mitologia. Os livros se compleme
ntam. O fazer e o refazer da cosmogonia africana em terras brasileiras, por meio do candomblé, acabam inventando e recriando uma África mítica. As notas explicativas no final de cada livro são fontes de consultas que permitem o entendimento dos livros separadamente. O primeiro livro conta a história de Ifá, desde quando começou sua adivinhação até se tornar orixá. O segundo livro e o terceiro são as histórias conhecidas por ele.

Justificativa da escolha dos dois livros para um programa

- O objeto dos livros remete-se claramente à cultura africana. Os livros se inserem na vertente literária que busca resgatar as tradições africanas.

- Nos dois livros são encontrados o panteão dos deuses africanos. Ao longo dos dois volumes é possível conhecer as histórias dos orixás.

- A leitura da mitologia africana em uma ótica que reúne ao mesmo tempo a tradição preservada e as recriações (traduções) do povo brasileiro.

Especificamente pode–se trabalhar os seguintes aspectos com cada livro

- O primeiro volume pode ter como eixo apenas as histórias relativas à trajetória de Ifá. Os outros contos podem ser suprimidos. Os eventos se desenrolam num tempo em que os orixás viviam com os homens, quando não havia separação entre deuses e humanidade. Este livro trata dos grandes temas presentes nas culturas africanas, tais como a morte, a vida e o sentido da vida. Assim podemos perceber que a morte, por duas vezes, foi vencida pela astúcia. Na primeira com a ajuda de Eua, que escondeu Ifá (páginas 9 e 12) na barra de sua saia; na segunda os filhos de Euá cansam a morte, pois ela não percebe que os êres eram gêmeos (páginas 26/32). Vida e Morte estão entrelaçadas nas histórias de Ifá. O sentido da vida foi explicado por Olorum a Ifá, e quando este o ensinou a buscar nas várias histórias passadas as semelhanças com as atuais, tal como contada nas páginas 45/49, ele se tornou um grande adivinho. Assim, mais uma vez, a circularidade do tempo está colocada, de forma diferente da lógica européia (ocidental), pois passado, presente e futuro misturam-se em um tempo mágico.

- Em Xangô são contadas as histórias dos orixás. Há sempre um jogo entre a ação dos deuses, as forças da natureza que eles desencadeiam e o universo humano. Exemplos disso estão nas páginas 12/16 onde desenrola a história do trovão, mas pode ser vista também na narrativa que contempla o vento, a brisa e a tempestade na história de Iansã (páginas 21/25), ou com Iemanjá nas páginas 33/35.

Sugestão de trabalhos para o programa

Dois trabalhos podem ser desenvolvidos simultaneamente em um programa. O primeiro visa colocar a África no centro das discussões das crianças. A idéia é perguntar o que as crianças conhecem da África (o que sabem sobre a África), que região da África elas gostariam de conhecer e por quê. O mote é buscar uma aproximação com África.

Ainda nesta linha, já que os dois livros têm como referência a mitologia africana, pode-se buscar objetos, palavras, comidas que deixem claro que África está muito próxima. A idéia é mostrar que, apesar da existência de um oceano que separa o Brasil da África, os laços culturais nos unem, e isso pode ser vivido cotidianamente, por meio de palavras como cafuné, cambada, mocotó, das danças, das comidas etc.

O livro trabalha com as forças da natureza, ora como um bem ora como dissonância entre deuses e homens, assim a chuva pode ser uma dádiva e a tempestade, um transtorno. O homem deve reconhecer os indícios e se preparar para conviver com as mudanças de tempo. Qualquer atividade que desenvolva essas questões é apropriada. Isso pode ser feito por meio de desenho, ou de situações que trabalhem com a percepção do tempo das crianças, como por exemplo ao ir à praia deve-se levar protetor, na chuva carregar uma sombrinha; e mostrar que a falta dessa percepção pode causar alguma perturbação, tais como ficar “queimado” no sol ou molhado na chuva.

Para saber mais

.
Altuna, Raul. Cultura Tradicional Banto. Luanda: Publicação do Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, 1985.
. Appiah, Kwamc. Na casa de meu pai. África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Editora Contra Ponto, 1997.
. Araújo, Emanoel.(apresentação) A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: MAM, 1988. (catálogo de exposição póstuma de Emmanuel Zamor)
. Cunha Jr., Henrique. Tear africano. São Paulo: Selo Negro, 2004.
. Lopes, Nei. Novo dicionário banto do Brasil. São Paulo: Pallas, 1999.

::: Textos de Lucia Silva, Dra. História Social.







A botija de ouro e
O presente de Ossanha

LIVROS

:: A Botija de Ouro, de Joel Rufino – Ilustrações: Zéflávio – Editora Ática.

:: O presente de Ossanha, de Joel Rufino – Ilustrações: Maurício Veneza – Editora Global

As histórias desnudam a formação social que, apesar de coisificar juridicamente o escravo, teceu ao longo de 300 anos relações cujo suposto é a humanização dos agentes. Sem vitimizar o escravo, mesmo que o colocando em uma posição subalterna, a afinidade estabelecida entre as crianças escravas e os filhos de seus respectivos donos explicita a capacidade de superação (seja pelo conflito ou negociação) dessa sociedade injusta e hierarquizada.

Observações gerais

Os dois livros contam a história da amizade entre duas crianças no tempo da escravidão. No primeiro livro a amizade torna-se a força para que ambos, a partir de suas realidades sociais, lutassem contra a escravidão. No segundo livro, a cultura africana é vista como instrumento de construção de um povo, portanto, de libertação.

Os dois livros inserem-se na vertente literária que desnuda o novo universo social/cultural construído no Brasil a partir das matrizes africana e européia, em meio à horrenda instituição que foi a escravidão. Negociações e conflitos estão postos na atuação dos meninos.

Justificativa da escolha dos dois livros para um programa

- A desigualdade social que o sistema escravista possibilitou e que se tornou a raiz do preconceito racial. A escravidão engendrou o racismo.

- Apesar da escravidão a existência da relação de amizade entre os grupos sociais distintos, permitindo uma visão não só da repressão, mas da humanização os sujeitos sociais.

- Não só as formas diferenciadas de luta contra a escravidão, seja nos quilombos ou na atuação dos abolicionistas como no primeiro livro, mas dimensionando as vitórias e derrotas dessa luta como a venda do moleque no segundo livro.

- Cotidiano da sociedade escravista rural. As histórias se passam em uma fazenda de cana-de-açúcar.

Especificamente pode–se trabalhar os seguintes aspectos com cada livro

Em “o amigo do rei” a história se desenrola em um cenário construído pela desigualdade social. O nascimento dos meninos (páginas 3 e 4) explicita essa situação na medida em que um nasce na senzala e o outro, na casa-grande. Apesar da desigualdade social, é construída uma profunda amizade.

O fato de ser escravo não apagava o conhecimento de suas raízes e de sua história. As situações cotidianas que o colocavam em posição subalterna (como o fato de apanhar ou o Ioiô ter sempre razão) não anulavam a consciência de que ele era um rei, como mostra o texto nas páginas 9 e 10.

O quilombo é apresentado como forma alternativa à sociedade escravista, e principalmente como forma de luta/oposição a essa sociedade. As forças sociais então são invertidas, mas isso não significou uma nova hierarquização e dominação, já que a amizade entre os dois manteve-se a mesma. A organização social do quilombo emerge sob as bases da igualdade. Ser amigo do rei não o colocava em uma posição subalterna tal como nos conta o texto das páginas 23/25.

Essa experiência social fez com que Ioiô, ao voltar para sua sociedade, passasse a lutar contra a escravidão (página 31), mas, diferentemente do que defende algumas vertentes da nossa historiografia, o livro mostra que essa luta não foi fruto da atuação solitária de um grupo de intelectuais brancos, os afro-descendentes também se opuseram ao cativeiro e os quilombos faziam parte desse processo, que culminou na abolição. Matias (o rei do quilombo) explicita isto nas páginas 27/28.

Já em “o presente de Ossanha” os mesmos temas são tratados, a questão da desigualdade social e da amizade, mas, diferentemente do primeiro livro, os aspectos culturais estão subjacentes ao universo tecido pelo escravo. Apesar da dureza, pois fora comprado para servir de companhia ao filho do dono de fazenda, ele conhecia os mistérios das matas e reconheceu imediatamente Ossanha, tal como o mostrado nas páginas 5 e 7.

A maravilha que não tinha preço (o pássaro cora) era fruto da identidade cultural do escravo, daí não poder ser vendido. Era uma lógica que estava em dissonância com o universo cultural engendrando pela escravidão, onde a idéia de mercadoria e preço existe. As páginas 10 e 12 explicitam que, mesmo sob as ameaças físicas prometidas pelo dono, não havia dinheiro que pudesse tirar o pássaro do moleque.

Na relação de amizade, o patamar de igualdade estava estabelecido entre as crianças, mas como a escravidão perpassa todas as relações que constituem aquela formação social, ocorre a inversão dos papéis sociais. Ao assumir que o escravo agora era o “nhosinho”, na medida em que ele precisava do cativo para brincar, ele ratifica a perversidade da instituição da escravidão (página 12).

O presente de Ossanha (o pássaro cora) dado ao moleque torna-se de fato um presente, já que é a materialização de um universo cultural que mesmo sob a escravidão não morreu, e por meio desse resgate ajudou-o a construir sua identidade cultural, libertando-o.

Esse conhecimento que a liberdade porta em si não tem paralelo com a instituição da escravidão. O moleque é vendido como uma mercadoria, mas está livre, pois é senhor de si mesmo; sua humanidade e sua cultura podem então ser presenteadas ao “nhosinho”, que está preso em uma estrutura social hierarquizada e desigual (página 14).

Sugestão de trabalhos para o programa

A grande questão levantada nos textos, além da escravidão, é claro, é a da amizade. Seria interessante conversar com as crianças sobre quantos amigos elas têm, o que brincam com seus amigos e o que as fez escolherem esses amigos.

A amizade entre o escravo e o filho do dono põe em relevo a possibilidade de discussão sobre a escravidão. Como as crianças são pequenas deve-se trabalhar com hipóteses do tipo: se elas vivessem no tempo da escravidão o que elas fariam para ajudar a libertar os escravos, e/ou perguntar a elas o que sabem sobre a escravidão.

Para saber mais

. Conrad, R E. Tumbeiros. São Paulo: Brasiliense, 1985.
. Costa, Emilia Viotti da. A Abolição. São Paulo: Global, 1986.
. Gomes, F S e Reis, JJ. A liberdade por um fio. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
. Gomes, F. S. História de quilombolas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
. Gorender, J. Escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1985.

::: Textos de Lucia Silva, Dra. História Social





PROGRAMA


Ana e Ana e A pirilampeia e os dois meninos de Tatipurum

LIVROS

:: Ana e Ana, de Célia Godoy – Ilustrações: Fé – Editora DCL.

:: A Pirilampéia e os Dois Meninos de Tatipurum, de Joel Rufino / Walter Ono – Editora Ática.

Em cada livro são dois os protagonistas, Ana Carolina e Ana Beatriz são as duas irmãs gêmeas, em “Pirilampeia” são os meninos Fulano e Sicrano. Os dois livros fogem da temática étnica em si, mas abordam a questão da convivência entre os diferentes. Um dos livros se insere na vertente literária que privilegia o cotidiano da população negra e o outro de certa forma contempla a discussão do “multiculturalismo”.

As Anas são iguais por fora porque são gêmeas, mas são muito diferentes. Detestam serem vistas como iguais e fazem de tudo para explicitarem suas diferenças. Já Fulano e Sicrano moram em um pequeno planeta chamado Tatipurum, cada um vive ao seu modo achando que o outro vive de cabeça para baixo. A história gira em torno de como cada menino procura provar que tem razão quanto à idéia de viver na parte de cima do planeta, isto até a chegada da “abelha” pirilampeia. Ela mostra aos dois que no espaço não existe o “em cima” ou “o embaixo”.

Justificativa da escolha dos dois livros para um programa

- No primeiro livro as protagonistas são negras e estão inseridas em um cenário social confortável, na medida em que pertencem à família que chamaríamos genericamente de classe média, fugindo do estereótipo do “negro/pobre”. No segundo livro o autor é afro-descendente e de grande visibilidade social.

- Em Ana e Ana está subjacente ao tema da diferença, a questão da beleza (negra) feminina, segundo a qual as escolhas com as roupas, o corte de cabelo e os acessórios materializam as diferentes personalidades. A beleza negra como instrumento de afirmação da auto-estima.

- Em “Pirilampeia”, a aceitação dos valores do outro e a questão da convivência com o diferente permitem ampliar a discussão da multiplicidade de culturas. A dificuldade de entender “o que não é espelho”, valorizando e aceitando o diferente para cada menino é um problema, na medida em que desejavam impor as suas idéias ao outro.

Especificamente pode–se trabalhar os seguintes aspectos com cada livro

- Em Ana e Ana a ilustração da página 3 começa mostrando quanto as meninas são iguais, a ponto de a avó que cuidava delas não as distinguir. O jogo semelhança/ diferença é um problema para as duas. A sociedade não reconhece suas individualidades, vendo-as como única daí tudo igual, tal como explicitado na página 14.

- Diferença social não significa desigualdade social. Ao longo das páginas 5/13, elas explicitam seus olhares e seus modos de vidas, sem que isto signifique a depreciação da outra. Ao ratificarem o gosto pelos apelidos, elas deixam o primeiro nome submetido ao segundo, são Anas, mas também são Carol e Bia (o que no final das contas as diferenciavam) (página 15). Ressaltar a diferença não significa desqualificar o outro.

- As diferenças são mantidas com a separação das duas, mas ao fim elas percebem que podem ser diferentes estando juntas (página 23). A convivência com as diferenças não precisa ser feita por meio da distância. A sociedade pode perfeitamente comportar a pluralidade cultural.

- Em “Pirilampeia” a diferença entre os meninos passa também pela questão da dominação. Viver de forma diferenciada não é o problema, tal como a descrições das brincadeiras de Fulano e Sicrano nas páginas 7 e 8; a questão colocada gira em torno de um aceitar a idéia do outro. O problema fundamental do livro é que não se constrói um espaço de interlocução entre eles e com isso não há diálogo; a tensão se materializa nas irritações e frustrações de ambos, cada vez que um consegue provar que está certo. Ao longo das páginas 11/19 é possível perceber que a vitória de um passa pela negação do outro. Para eles a vitória passaria pela desqualificação do outro: é a diferença se tornando desigualdade.

- O surgimento de um mediador, a abelha (páginas 20/22), ao construir um espaço de diálogo permite que Fulano conheça Sicrano, as ilustrações (desde a primeira página) mostram quanto são muito parecidos, principalmente na forma de tratar o outro.

- Eles percebem que podem conviver com as diferenças, pois a revelação da abelha de que no espaço não há embaixo ou em cima, eles passam a fazer o que o outro faz (páginas 30/31). Assim um incorporou o modo de viver do outro, respeitando-o.

- Não há cultura melhor do que a outra. Enquanto um tentava impor seus valores ao outro, o pequeno planeta estava tomado pela tentativa de dominação e a guerra. Na página 32 ficou claro que eles aprenderam a conviver com as diferenças e em função disso as brigas terminaram.

Sugestão de trabalhos para o programa

Os dois livros trabalham com a relação semelhança/diferença. Em um livro as meninas queriam apagar as semelhanças, ao passo que os meninos queriam impor uma semelhança (homogeneizar) à força. Qualquer atividade que trabalhe ou discuta o igual e o diferente, como jogos de memória, espelhos ou brincadeiras em duplas, é particularmente interessante.

O outro livro também trabalha com a mesma relação, mas agrega o componente dominação. Nessa faixa etária, as brincadeiras que exijam um líder são o que mais se aproxima dessa noção, assim o rodízio de liderança pode ser apropriado para que as crianças experimentem os dois lados da situação (“mandar e ser mandado”), tal como os meninos fizeram quando trocaram de lado no planeta (página 31).

Para saber mais

. Chagas, Conceição Corrêa. Negro: uma identidade em construção. Dificuldades e possibilidades. Rio de Janeiro/Petrópolis: Vozes, 1996.
. Fernandes, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978, 2ª ed.
. Fonseca, Maria Nazareth Soares (org). Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: AutÊntica, 2000.
. Gonçalves, E. (org). Desigualdades de gêneros no Brasil. Goiânia: Grupo Transas do Corpo, 2004.
. Lebovici, Serge. Significado e função do brinquedo na criança. Porto Alegre: Arte Médica, 1988.
. Munanga, K. (org). Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo: EDUSP, 1996.

::: Textos de Lucia Silva, Dra. História Social.



Bruna e a galinha d’angola e Berimbau

LIVROS

:: Bruna e a Galinha d´angola, de Gercilda de Almeida – Ilustrações: Valéria Saraiva – Editora Pallas

:: Berimbau, de Raquel Coelho – Ilustrações: Raquel Coelho – Editora Ática

Os dois livros apresentados são de adivinhação, fazem parte da coleção amigo oculto. A autora ao longo do texto dá pistas ao leitor para que ele descubra a identidade secreta dos sentimentos a que ela está se referindo. A idéia que permeia os dois livros é que o leitor seja capaz de descobrir antes do término da leitura. No primeiro livro a história do menino inesperado é a do medo, ao passo que Lili é a da liberdade.

Em uma narrativa lírica e envolvente, a autora desenrola todas as possibilidades de discussão em torno dos dois grandes temas abordados.

Os dois livros podem ser inseridos no que genericamente se denominou de literatura infanto-juvenil, ambos ancorados na poesia.

Justificativa da escolha dos dois livros para um programa

- A autora é afro-descendente com grande visibilidade social e os temas apresentados nos dois livros são atuais e profundamente elaborados. São sentimentos que estão presentes em todas as culturas, sendo, portanto, universais.

- Em forma de poesia, o sentimento do medo e a vontade de liberdade são apresentados de forma harmoniosa, formando um conjunto único.

- A brincadeira de adivinhação torna as características do medo e da liberdade importantes objetos de reflexão dos sentimentos humanos.

Especificamente pode–se trabalhar os seguintes aspectos com cada livro

- Em “Menino inesperado”, na página 1 desenrola-se o processo subjetivo em que ocorre o aparecimento do medo. O medo entra sem que se perceba, e a autora arrola as múltiplas razões dessa entrada. Desde as causas naturais como o temor por trovões até as causas sociais, como histórias contadas por adultos. Menos preocupada com sua instalação, o que interessa a autora é saber como lidar com esse sentimento.

- A autora aponta os aspectos positivos do medo. Nas páginas 5 e 7 são articuladas a relação medo e segurança, afinal quando ele é bem administrado garante a segurança do indivíduo.

- Apesar de ser indesejável, o medo é muito antigo e faz parte da humanidade. Buscar saber as razões do medo, não deixar que ele paralise as ações e principalmente reconhecer que é possível encará-lo, perscrutando as limitações humanas, torna possível vencê-lo. Na página 18, a ilustração explicita essa reconciliação. A fragilidade humana dá as mãos ao grande medo e, ao vencê-lo, acaba se tornando coragem (páginas 20/21). Vencer o medo significa reconciliar-se com ele.

- Em “Lili”, a liberdade é desejada, mas é um tesouro que precisa ser conquistado. Os inimigos da liberdade são muitos e estão sempre impedindo seu crescimento, daí as guerras. A liberdade só funciona e floresce na relação com o outro (páginas 5 e 6), apesar das guerras, o exercício da liberdade só ocorre na paz.

- O fato de ela não existir de forma acabada e pronta faz com que sua obtenção seja um exercício diário. As formas de obtê-la são diferenciadas, mas ela está presente e é importante em todas as esferas sociais. Sem liberdade de expressão não há arte (páginas 19/21).

- Um dos aspectos saudáveis da liberdade é o compromisso. Ser inconseqüente, ou seja, não reconhecer que a liberdade se situa entre o limite e a possibilidade de toda ação humana, torna esse valor social em algo leviano e irresponsável (páginas 13/31).

- A liberdade tem a possibilidade de reunir a emoção e a razão. Nesse momento mágico e único emergem a criatividade e a astúcia. A primeira para ser substrato das artes (páginas 19/21), a segunda para ser a fonte do desafio contra todo o tipo de opressão (páginas 3/5/27).

- Todas as sociedades sonham em tê-la, pois é inerente à vontade humana (ou seja, é um valor social universal) e no ideal da ilustradora, Lili é negra, tal como se apresenta na página 32.

Sugestão de trabalhos para o programa

A forma utilizada para a apresentação dos sentimentos é a poesia, mas o objetivo é a adivinhação. Assim qualquer brincadeira que envolva enigmas, charadas ou mesmo adivinhação seria interessante.

Podem-se ainda trabalhar os dois temas em seus aspectos positivos. Tanto o medo quanto a liberdade são valores sociais universais. Como a faixa etária ainda não assimila a importância dessas abstrações (enquanto tema), mas entende perfeitamente o seu significado, pode-se trabalhar com escolhas como a materialização da liberdade e o medo como mecanismo de defesa.

Para saber mais

. Arendt. Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988.
. Chauí, Marilena. Cultura e democracia. São Paulo: Cortez, 1993.
. Delumeau, Jean. A história do medo no Ocidente 1300/1800. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
. Freire, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’água, 1995.
. Jung, C. G. Desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 1998.
. Jung, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2005, 15ª ed.
. ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

::: Textos de Lucia Silva, Dra. História Social



PROGRAMA


O filho do vento

LIVRO

:: O Filho do Vento, de Rogério Andrade Barbosa – Ilustrações: Graça Lima – Editora DCL

O primeiro livro conta a história de uma menina solitária que, ao ganhar uma galinha, faz amizades e acaba recuperando a história de sua comunidade. O segundo livro também conta a história desse resgate, só que por meio de um berimbau. No primeiro livro, a galinha serve de instrumento para recuperar a história da comunidade de Bruna, procurando primordialmente ressaltar a filiação de sua aldeia com a África, ao retratar o mito da criação do mundo.

No segundo livro o instrumento é o berimbau. Por meio do berimbau, o moleque Léo recupera a trajetória de sua comunidade desde o tempo da escravidão.

Nos dois livros a memória contribuiu para a construção da identidade social. Enquanto campo de tensão e relação de força, as memórias são sempre sociais, necessitam de uma referência material para ser acessada, daí a importância dos patrimônios como instrumento de resgate de uma determinada memória. A tensão dar-se justamente na eleição dos objetos, como portadores de lembranças. Há toda uma engrenagem social para reforçar e “sacralizar” esses objetos eleitos e esquecer outros. As sociedades não-ágrafas normalmente dispõem de duas grandes estratégias, a primeira está na História e na construção dos heróis; a segunda está nas relações familiares que passam os valores e as tradições dos grupos para as novas gerações. Em contato com essas duas estratégias os indivíduos constroem seus valores e transmitem-nos para a geração seguinte. Os parentes mais próximos como os avós e os pais têm esse papel social, ou seja, são os que mantêm e perpetuam os valores sociais da comunidade.

Justificativa da escolha dos dois livros para um programa

- É um livro infantil que retrata o universo mítico africano representado pela galinha d’angola e sua relação com a criação do mundo de uma forma didática, lúdica e prazerosa.

- O segundo livro conta por meio de um instrumento musical como um menino descobre a cultura de seu povo. Nesse processo de resgate ele mistura várias temporalidades (passado/presente), abrindo inclusive a possibilidade de se pensar o futuro.

- Em ambos, esse resgate tem o objetivo de ressaltar a riqueza da cultura africana e a participação desta cultura na formação social brasileira.

Especificamente pode–se trabalhar os seguintes aspectos com cada livro

- Por meio do panô da avó de Bruna (página 1) desvela-se todo um processo de resgate das raízes das tradições afro-brasileiras, nas quais a confecção das galinhas em argila (página 5 e 9) e da pintura dos tecidos (página 15) ocupam um lugar fundamental nas tradições da comunidade. Bruna ensinou as amigas a fazer a Conquem (galinha) de argila e depois as mulheres da comunidade aprenderam a pintar os tecidos com as cores do panô da avó. Esse conhecimento estava ligado às memórias ancestrais que foram resgatadas pela menina e acabou por ajudar a comunidade duplamente: cultural e financeiramente na medida em que os tecidos da aldeia ficaram famosos (página 15).

- A criação do mundo como interação homem/natureza e sua relação com os animais estão colocadas. A galinha criou a terra (página 13), trouxe amizade para Osun (página 1) e Bruna (página 9), acabando por unir a comunidade e resgatando um passado só conhecido pela avó. As forças da natureza representada na Conquem potencializaram toda a transformação da aldeia que recuperou sua auto-estima (página 17).

- A história que está contida no panô da avó (a de Osun) é a mesma de Bruna, que passa a ser a história da comunidade. As temporalidades (presente - Bruna/passado - Osun) contidas no mito da criação do mundo estão novamente em marcha no presente, misturadas nas três narrativas, inclusive na incorporação do leitor na última página. Em “Berimbau” o mesmo ocorre. O menino Leo, ao tocar o instrumento, podia ver no céu o futuro (página 14/15) e no chão o passado (página 17/20), ao tocar seu instrumento todos os tempos se misturavam no presente mágico da música (página 21).

- A ancestralidade como elo entre as gerações. Nas duas histórias as avós serviam de ponte ao passado e guardiãs das tradições. A avó de Leo guardou as narrativas do tempo da escravidão, não só os costumes, mas as lutas e o desejo de liberdade (página 5). Foi por causa das histórias da avó que ele foi parar no antigo quilombo, lugar onde conheceu o desconhecido e ganhou o berimbau (página 8/12), ao experimentar, por meio do berimbau, as vivências do passado que ele só conhecia das histórias da avó, elas se tornaram vivas, possibilitando o vislumbre de um novo futuro.

- A música como poderoso instrumento de resgate do universo cultural afro-brasileiro. O berimbau, a roda de capoeira e a música foram incorporados como produtos da experiência social de um grupo. O desconhecido, ao dar o berimbau ao pequeno Leo, redimensionou a trajetória da comunidade (página 23). A memória, enquanto repertório utilizado pelo grupo na construção de uma identidade cultural, estava preservada porque foi ampliada. O berimbau disseminaria para mais gente a tradição do grupo (página 27).

Sugestão de trabalhos para o programa

A grande temática tratada pelos dois livros é a questão do resgate de uma cultura. A idéia de trazer à tona algo latente está colocada nos dois livros. Tanto o pano quanto o berimbau foram importantes para essa descoberta. O baú da avó de Bruna continha todos os elementos que possibilitaram este resgate. Seria interessante trabalhar com caixas que podem conter várias surpresas, tal como o baú da avó de Bruna.

Outra atividade interessante, ainda ligada à questão do resgate, seria o trabalho de/com modelagem. Bruna e suas amigas aprenderam a fazer as galinhas modelando a argila. Atividades de construção de brinquedos com materiais reciclados seriam apropriados, ou simplesmente brincadeiras com massinhas.

O berimbau foi o instrumento de resgate da memória da comunidade, assim qualquer atividade que envolvesse instrumentos ligados nitidamente à cultura afro-brasileira seria interessante.

Para saber mais

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Fenelon, D et ali. (org). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’água, 2004.
. Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
. Lopes, Nei. Novo dicionário banto do Brasil. São Paulo: Pallas, 1999.
. Munanga, Kabengele (org.). História do negro no Brasil: O negro na sociedade brasileira: resistência, participação, contribuição. Brasília: FCP, 2004.
. Silva, Vagner Gonçalves da (org.). Caminhos da alma: memória afro-brasileira. São Paulo: Summus, 2002.

::: Textos de Lucia Silva, Dra. História Social.



O Menino inesperado e Lili - a rainha das escolhas

LIVROS

:: Lili –A rainha das escolhas, Elisa Lucinda – Ilustrações: Graça Lima – Editora Record

:: O Menino Inesperado, Elisa Lucinda – Ilustrações: Graça Lima – Editora Record

Os dois livros trabalham com importantes personagens da História brasileira. O primeiro livro conta a história do personagem Chico Rei, enquanto o segundo relata a vida de Aleijadinho. O primeiro, em forma de poema, conta a vinda de Chico Rei da África como escravo até a compra de sua alforria. Já o segundo, por meio de um menino, relata os principais pontos da trajetória de Aleijadinho, o grande mestre da arte barroca.

Justificativa da escolha dos dois livros para um programa

- O objeto dos livros remete-se claramente à História (processo histórico) brasileira. As histórias giram em torno da vida dois personagens. O primeiro é africano e o segundo, descendente.

- Os dois livros dão uma visão geral da escravidão, contextualizando a atuação dos personagens no período em que viveram.

- São livros que podem ser utilizados como instrumento pedagógico. As obras transpõem para o universo infantil a vida de dois grandes personagens, que podem ser vistos enquanto mitos brasileiros, independentes de sua existência ou não. Isso se torna válido principalmente para Chico Rei na medida em que se discute sua existência ou não. Os dois personagens têm uma função social no nosso imaginário, mesmo que não tivessem existido tal como contam, o que importa é a memória construída socialmente deles.

Especificamente pode–se trabalhar os seguintes aspectos com cada livro

- Em “Rei Preto” a exuberância natural do continente africano é apresentada nas páginas 2 e 3, desde os aspectos físicos mais conhecidos como a selva e os grandes mamíferos, até a organização social onde Chico Rei era (seria) chefe guerreiro.

- O livro enfatiza a estranheza dos europeus diante daquela natureza exuberante e da organização social. Ainda apresentado a África, a autora ressalta também uma das facetas mais violentas da escravidão moderna: o aprisionamento de escravos (páginas 8/9).

- A partir daí o livro se centra na trajetória individual do Chico Rei, que trabalhou nas minas das Gerais e acabou por comprar sua própria alforria (páginas 11/13). O esforço pessoal garantiu não só sua própria liberdade como aos de sua comunidade. Mesmo levando-se em consideração a possibilidade de sua invenção, o que importa é a memória que se construiu em torno do mito, tal como é apresentado na página 14.

- No livro, o sonho de liberdade de Minas é articulado ao de igualdade racial, a partir da trajetória pessoal que Chico Rei simboliza. Nas páginas 18 e 19 seu esforço pessoal torna-se social na medida em que é articulado o seu sonho de liberdade ao sonho de liberdade da nação.

- Em “Aleijadinho”, a autora, utilizando-se de um menino que volta no tempo para conhecer o grande escultor, começa a descrever os aspectos físicos que determinaram seu nome/apelido. A autora ressalta que a deficiência física causada pela doença não impediu ou limitou que ele continuasse seu trabalho e fosse um importante artista do barroco mineiro (páginas 6/12).

- A autora também contextualiza o sistema escravista, indicando as brechas e as limitações da escravidão enquanto elemento fundador da formação social brasileira, não só ressaltando a origem de Aleijadinho, mas colocando o fato de ele possuir escravos. A surpresa do menino em saber que o alforriado tinha escravo denota essa situação aparentemente paradoxal do sistema escravista (páginas 24/25).

- O grande objeto do livro é a genialidade de Aleijadinho. O menino queria acompanhar seu processo de criação. Ao fazê-lo percebe que só um mestre como ele seria capaz de desvelar o profeta que existia no interior da pedra sabão (página 18).

- O menino discorre sobre as obras do mestre e as articula à configuração espacial das Gerais (páginas 34/35), explicitando a sintonia existente entre a arte, a sociedade mineira e o espaço (as montanhas). Nesse sentido Aleijadinho transcende ao próprio contexto de criação, tornando-se imortal por meio de suas obras.

Sugestão de trabalhos para o programa

Os dois livros trabalham com a arte barroca. Em “Rei Preto”, o narrador da trajetória de Chico Rei é um anjinho barroco; em “Aleijadinho” as obras do mestre são expostas didaticamente. Assim, qualquer trabalho ou discussão que se remeta ao barroco, ou às artes plásticas em geral, seria apropriado.

O outro eixo que une os dois livros é a vida extraordinária dos dois personagens. Suas ações são articuladas a uma causa maior que eles mesmos, como foi o caso da escravidão em Chico Rei, ou a magnificência das obras que sensibilizam várias gerações como foi o caso de Aleijadinho. Os dois podem ser pensados enquanto heróis da História brasileira.

A idéia de herói pode ser trabalhada de várias formas, desde pequenas ações cotidianas e a atuação de algumas profissões como os bombeiros, por exemplo, até a discussão sobre a construção dos grandes vultos pela historiografia (até porque há a discussão sobre a historicidade de Chico Rei). Em todos os casos, o que se sobressai são os atos extraordinários experimentados pelos sujeitos sociais.

Para saber mais

. Fausto, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2002.
. Gorender, Jacob. Escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1988, 5ª ed.
. Gorender, Jacob. Escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1991.
. Scarano, Julita. Negro nas terras do ouro: cotidiano e solidariedade no século XVIII. São Paulo: Brasiliense, 2002.
. Vasconcelos, Agripa. Chico Rei: romance do ciclo da escravidão nas gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966.
. Vernant, J. P. Entre mito e política. São Paulo: Edusp, 2001.
. Vernant, J. P. Universo, os deuses, os homens. São Paulo: Cia. das letras, 2000.

::: Textos de Lucia Silva, Dra. História Social.




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